Lia Motta: palhaça, feminista e empoderada
Para abrir nossa série de entrevistas, convidamos a Lia Motta, palhaça, feminista e empoderada!!!!
Lia Motta é a idealizadora da Mostra Tua Graça Palhaça, um evento voltado ao trabalho das palhaças mulheres, que realiza sua segunda edição de 18 a 25 de março deste ano. Lia também está a frente da Cia. Palhaça Sem Lona que se dedica à pesquisa da linguagem da palhaçaria desde sua fundação, em 2009. Nesses sete anos de atividades montou três espetáculos. Palhaças sem lona: O circo não chegou (2010); Bem te vida Marmotta (2014) e Surpresa! (2016) .
CÊNICAS: Por que se tornou necessário levantar a bandeira do empoderamento feminino de forma mais efetiva nesses últimos anos?
LIA MOTTA: Necessário sempre foi. A questão é que eu vejo os movimentos feministas se fortalecendo, mas, como o discurso político muitas vezes é um pouco agressivo, é necessário se fazer um trabalho de empoderamento e isso nos encoraja a ter uma atitude com relação à posição que ocupamos na sociedade. Ainda é delicado para muitas mulheres perceberem o quanto são fragilizadas pela sociedade de diversas formas. Quando penso em empoderamento feminino eu penso num empoderamento humano, pois as mulheres sempre foram caladas na sociedade e se empoderar pressupõe uma união das mulheres naquilo que nos torna fortes e confiantes. Então, nesse processo vamos aprendendo a desconstruir os velhos estereótipos a nós delegados: de que somos competitivas entre nós, de que não somos confiáveis, de que somos fofoqueiras, e uma serie de outras coisas que nos afastam umas das outras e nos colocam distantes, pois afinal não somos confiáveis. Talvez saindo desse lugar de medo que sentimos umas das outras possamos, abraçadas, encontrar uma nova ordem, outro caminho para o mundo, mais amoroso. Incomodam-me um pouco os discursos feministas que minimizam a nossa sensibilidade, que negam a nossa força intuitiva e amorosa, pois eu acredito que são qualidades totalmente necessárias para uma revolução mais do que necessária e urgente.
CÊNICAS: Como a arte pode contribuir para isso?
Lia: A arte tem um grande poder de sensibilizar as pessoas, de levar o expectador para outro lugar, diferente de onde ele habita. Isso é tão importante quanto as discussões a respeito de feminismo ou qualquer outro tema que precise ser mexido. Não é possível apenas "pensar" o mundo, vivemos num tempo onde se pensa muito sobre tudo e se sente muito pouco, então vejo a arte com uma função extremamente importante, pois é preciso abrir um espaço sensível para trazer os questionamentos necessários, de modo que as pessoas estejam menos defensivas e mais abertas ao diálogo.
CÊNICAS: Vimos diversos trabalhos de arte e feminismo, mas ainda são poucos no meio das artes cênicas. Ao que você atribui isso?
Lia: O machismo atua de modo velado em todas as esferas da sociedade, mas no meio artístico isso é ainda mais velado, tal como nos movimentos de esquerda. Ninguém é machista, entretanto as ações falam por si. Ainda hoje existem lugares que são "negados" às mulheres. No teatro, por exemplo, historicamente o gênero cômico é atribuído aos homens, enquanto o drama é a arte das mulheres, qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência. A comédia é o lugar da liberdade, é o espaço que me permite dizer as verdades da sociedade sem ter a cabeça decepada pelo rei, pois afinal o cômico é apenas um bobo. Imagina as mulheres empoderadas tomando essa ferramenta para elas?
Não é bom, pois a comédia possibilita criar um vínculo profundo com o expectador, o riso nos conecta mais do que o discurso choroso ou furioso. A arte é feita por sujeitos que fazem parte da sociedade, então é compreensível que as questões ligadas ao feminino sendo elas políticas ou não, também sejam menosprezadas pela arte numa sociedade machista. Conheço muitas mulheres artistas que acham que não há diferenças entre nós e os homens, mas, por exemplo, aqui no Brasil foi preciso se iniciar todo um movimento de palhaçaria feminina para que as mulheres que queriam se dedicar ao estudo da arte de palhaço pudessem ter mais visibilidade e não fossem rechaçadas pelos palhaços homens nos encontros e festivais de palhaços, pois ainda hoje há quem defenda que o palhaço é um arquétipo exclusivamente masculino e portanto não pode haver mulher palhaça.
CÊNICAS: Como você acha que contribui com o seu trabalho como artista e pesquisadora para a desconstrução das expectativas e normativas de gênero no teatro?
Lia: Bom eu sou palhaça! Demorei algum tempo para conseguir assumir isso, e tudo por causa das referências que eu tinha. Eu conhecia poucas mulheres palhaças e quando ia aos encontros tinha uma ou outra que era convidada e eu nem imaginava quantas existiam. Então conheci um grupo do Rio chamado "As Marias da Graça" e soube que foi o primeiro grupo de mulheres palhaças do país, e soube que elas faziam um encontro de mulheres palhaças, e fui buscando cada vez mais, pois tudo o que eu via de palhaços, apresar de me encantar, me deixava um pouco perdida, pois eu não conseguia ver como eu poderia fazer aquilo. Fui então entendendo que a palhaçaria é povoada por gags e piadas tradicionais de circo, e aí vem a grande questão: no circo não tinha mulher palhaça. Poderia ter mulher PALHAÇO, mas palhaça não. Então as piadas, as gags, as técnicas, estão muito dentro de um universo masculino. Claro que podemos nos apropriar destas coisas todas, mas antes precisamos descobrir como elas podem fazer parte do nosso universo, e pra isso é preciso reconhecer o nosso universo e encontrar a nossa voz, saber sobre o que queremos falar, sobre qual aspecto do universo feminino queremos fazer piada. A grande questão é que mesmo não seguindo as técnicas tradicionais de palhaçaria, o palhaço tem a responsabilidade da transgressão, e aí também esbarramos em muitas barreiras, por que muitas de nós precisam conseguir retirar as próprias amarras para conseguir transitar por esse território livre e transgressor sem fazer piadas que reafirmem a ordem machista já estabelecida. Então eu vejo a minha pesquisa trilhando este caminho, onde eu olho aspectos sociais da mulher, olho para as minhas necessidades pessoais como mulher, filha e mãe de uma menina (com uma família matriarcal impossível não se envolver com o tema), e penso que tipo de piada eu quero fazer? Eu quero reforçar os estereótipos? E qual o meu espaço? Estas perguntas estão sempre me orientando.
Eu optei por trabalhar na rua, sozinha como palhaça e vejo isso também como um ato político, uma forma de dizer as outras mulheres que este espaço - tanto o espaço físico da rua, quanto o espaço do riso - é nosso também. Eu crio meus números e espetáculos a partir de coisas muito íntimas, eu me exponho muito, completamente, vou pra rua totalmente "nua" olho nos olhos das pessoas e digo olha como eu sou ridícula e patética e principalmente livre, por que eu venho aqui e me mostro.
CÊNICAS: Em relação ao Rio Grande do Sul, há um machismo muito forte, você nota alguma diferença de atuar como artista mulher aqui em relação a outros estados?
Lia: Eu não sinto isso quando estou em cena, mas quando comecei a desenvolver ações artísticas com a temática do feminino percebi que isso gerava um grande frisson nas pessoas, muita curiosidade e comentários. Percebi que as mulheres se sentiam contempladas e gratas por terem um espaço de arte voltado diretamente para elas. Então eu comecei a entender que isso é o reflexo de um esmagamento dos espaços destinados às mulheres. Não existe isso aqui. Comecei a me aproximar de coletivos que atuam sobre o sagrado feminino e vi o quanto isso é importante para o empoderamento das mulheres e então tive a certeza de que queria caminhar por aí, fazendo meu trabalho e construindo vínculos com outras mulheres. Aqui no RS a discussão sobre o espaço das mulheres na arte é povoado por receio que muitas mulheres tem de serem "chatas", já ouvi de algumas artistas daqui coisas do tipo, "que não precisa criar um espaço só pra mulher" "que é vitimismo", nada muito diferente do que os movimentos feministas são acusados constantemente. Já ouvi perguntas de contratante do tipo: "ah, mas você consegue sozinha segurar um público de 300 pessoas?", acho engraçado, por que dificilmente se pergunta isso a um homem. Eu me vejo nos bastidores o tempo todo tendo que provar a minha capacidade de fazer rir, de trabalhar sozinha, enfim.
CÊNICAS: Quais trabalhos que você destaca na sua carreira que refletem a questão da mulher? Por quê?
Lia: Eu acho que não é necessário jogar na cena um discurso panfletário sobre a mulher, acho que as minhas escolhas como artista já refletem isso. Optar pela linguagem de palhaça quando ainda se fala de ser o palhaço um arquétipo masculino, já é uma transgressão. Trabalhar sozinha é uma transgressão dupla, pois sou eu dizendo que eu posso fazer isso também sozinha; ocupar o espaço da rua é transgressão tripla e pra terminar de rasgar o manual das boas maneiras eu trabalho com uma linguagem que está diretamente associada ao prazer. Não dá pra ser palhaço ou palhaça sem ter prazer, e aí eu vejo como meu trabalho é libertador, pois eu não preciso discursar sobre a minha necessidade e o meu direito a ter prazer com o que quer que seja, eu vou lá e sinto o prazer de fazer o que eu faço, eu me delicio brincando em cena, improvisando, jogando com o público e com meus próprios sentimentos. Então desde meu primeiro espetáculo de palhaça eu venho fazendo isso, mas com o “Bem Te Vida Marmotta” é onde eu sinto que consigo ir mais longe por que ele é um trabalho construído com coisas muito íntimas.
CÊNICAS: E dos que você já assistiu de grupos gaúchos?
Lia: Aqui no RS acho que o “Medeia Vozes” é um trabalho maravilhoso, que traz não só no discurso, mas nas atuações e no protagonismo das mulheres uma força estupenda e muito empoderadora. Na palhaçaria eu amo assistir o “Amostra Gratis”, da Ana Fuchs, onde ela brinca com muitos aspectos do universo feminino e literalmente se lambuza na loucura que constrói em cena. É muito libertador assisti-la! “As Bufa” também é um exemplo de trabalho feminino onde elas atingem um lugar de liberdade e prazer em cena que é delicioso de ver.
CÊNICAS: Recentemente, houve a mostra “Tua Graça Palhaça”. Como você vê a inserção da mulher neste universo? E qual a importância de desenvolver um evento com a participação somente de mulheres?
Lia: A mostra “Tua Graça Palhaça” foi inicialmente um evento totalmente despretensioso, onde queríamos unir forças pra dar mais visibilidade aos nossos trabalhos e através deles fortalecer as vozes femininas durante o mês de março, onde se fala um pouco mais sobre as mulheres. Quando começamos a divulgar eu percebi que havia muito interesse no tema e recebemos bastante apoio, mas também muito nariz torcido, principalmente no meio artístico. O espaço destinado às mulheres nos encontros e festivais de palhaços é ainda muito pequeno, é quase pra cumprir a cota do politicamente correto. Mas não basta encher de mulher nos encontros, precisa abrir espaço pra discussão, por que tem um discurso que vem amparado pela tradição e pela defesa do arquétipo do palhaço ser masculino que já não cabe mais, não basta, nem deveria mais ser discutido. Se o palhaço tem a missão de transgredir com os discursos da sociedade então vamos romper as barreiras de gênero e dar para as palhaças o mesmo espaço e respeito que tem os palhaços. É isso que eu defendo.
A Mostra tinha como finalidade nos aproximar para trocas, nos fortalecer enquanto artistas, conversar sobre nossos trabalhos. Foi surpreendente ver a reação das pessoas, especialmente jornalistas, quando falávamos de uma mostra de palhaças. Alguns chegavam a comentar comigo que era algo que gerava estranhamento, pois só ouviam falar de Palhaços. Como o que estamos construindo como palhaças ainda é relativamente novo, temos a necessidade de nos afirmar e criar nossos espaços. Não penso na mostra exclusivamente de mulheres, eu quero que aos poucos os homens também façam parte até para que a discussão sobre os espaços e os arquétipos não fiquem apenas com um lado da moeda. Acho importante construirmos uma nova ordem “palhacística” juntos. Vejo esta mostra como o primeiro passo de outras ações que pretendo desenvolver com o olhar voltado para o empoderamento feminino através da linguagem que eu pesquiso. O humor é libertador e ampliar este espaço para que as mulheres também se ferramentem do riso para dizer o que quiserem, e unir trabalhos femininos em um evento focado nisso, certamente fortalece as artistas envolvidas e o público, que passa a saber da existência destes movimentos, e se perguntar: mas por que só palhaças?
Eis a relevância de um evento como esse, instigar as perguntas.
(fotos P&B: dartanhan baldez figueiredo / foto colorida: maurício quadros)
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