Adriane Mottola e a Cia. Stravaganza
Em 1988, ao lado de Luiz Henrique Palese (1959-2003) e Cacá Corrêa (1964-2010), Adriane Mottola criou em Porto Alegre a Cia. Teatro di Stravaganza. Próxima de completar trinta anos de atividades ininterruptas, a Cia. Teatro di Stravaganza contabiliza inúmeros projetos, 26 espetáculos, 110 prêmios, seis peças em repertório (A Comédia dos Erros, Pequenas Violências Silenciosas e Cotidianas, as infantis Bebê Bum, Ópera Monstra e Príncipes e Princesas, Sapos e Lagartos e o espetáculo de rua Sacra Folia) e múltiplas vivências.
Entre os espetáculos que marcaram a trajetória da companhia estão Decameron (1993 a 1998), Bebê Bum (1999 a 2017), e A Comédia dos Erros (2008 a 2017). A Cia Stravaganza é formado por um núcleo artístico e colaboradores e a migração de um para outro acontece em ciclos, conforme as atividades do grupo e de seus membros. O “núcleo duro” conta com Adriane Mottola, Duda Cardoso, Janaina Pelizzon, Lauro Ramalho, Fernando Kike Barbosa, Ricardo Vivian, Rafael Guerra e Fernanda Petit. Com a colaboração mais que especial de Áquila Mattos, Geórgia Reck, Rodrigo Mello, Cassiano Ranzolin, Marcello Crawshaw e Liane Venturella.
Neste mês de abril, o Estúdio Stravaganza, local de encontro aberto à classe artística para ensaios, intercâmbios, residências, seminários e qualquer outra proposta imaginativa que envolva arte, ganhou uma nova sala que vai abrigar os Labs de Criação. Conheça mais sobre o grupo na entrevista a seguir.
Adriane Mottola em frente ao Estúdio Stravaganza que ganhou uma nova sala Foto: Cia Stravaganza divulgação
Cênicas: Como é que surge a Cia. Stravaganza? Quais são as principais características?
Adriane Mottola: A Stravaganza não nasceu com a intenção de ser um grupo. Eu e o Luiz Henrique Palese, namorávamos, então, planejamos um espetáculo. Criamos um roteiro para este primeiro espetáculo em casa, na imaginação, conversando. E em seguida fomos pra cena. Um amigo muito próximo, que era o Cacá Corrêa entrou para o elenco. Então, eu digo que a Stravaganza começou com essas três pessoas. Isso foi em 1988. Criamos o espetáculo infantil que se chamava Shandar e o Feitiço de Mungo. Dois anos depois, percebemos que havíamos criado outros espetáculos com as mesmas pessoas, e que isso configurava um grupo. Nesse início de carreira trabalhamos muito com teatro infantil, embora eu já fizesse teatro há bastante tempo - tinha feito DAD, trabalhava com outros diretores na cidade e o Palese também, porque ele foi do grupo Faltou o João. Quando fizemos o espetáculo A Lenda do Rei Arthur (1991) é que o grupo ganhou nome, colocamos o nome de Extravaganza, que a partir do Decameron se transformou em Stravaganza, pelas nossas raízes italianas. O nome foi tirado do Dicionário de Teatro, do Luiz Paulo Vasconcellos. Uma extravaganza (em inglês) é um trabalho literário ou musical (muitas vezes de teatro musical) caracterizado pela liberdade de estilo e estrutura e, geralmente, contém elementos de burlesco, pantomima, music hall e paródia. Pode ainda ter elementos de cabaré, circo, revista, variedades. O termo foi usado para descrever um tipo de drama britânico do século XIX, que se tornou popular com James Planché, que definiu-o como “o tratamento lunático de um assunto poético”. Da parceria de diversos espetáculos musicais infantis com o compositor gaúcho Ricardo Severo (hoje radicado em São Paulo) e do nosso interesse pela paródia e a mistura de estilos nasce o nome Stravaganza.
Cênicas: Como você identifica os diferentes momentos que o grupo atravessou durante a sua trajetória?
Adriane: Na minha dissertação Cia. Stravaganza : um olhar sobre os processos criativos no teatro de grupo, realizada no PPGAC da UFRGS eu identifiquei quatro momentos. Esse primeiro, é basicamente dramaturgia própria e de diversos espetáculos infantis. Depois, fizemos, no segundo momento, um espetáculo que muda completamente a nossa visão de mundo, que é o Decameron, que é um espetáculo popular. Trabalhamos muito a peça em cima do jogo, do prazer, da brincadeira infantil, muito em cima da cumplicidade que o Philippe Gaulier desenvolve para você ter prazer em cena, saber contracenar, estar sempre ligado no outro. Então, o Decameron foi um espetáculo que utilizou tudo o que tínhamos e nos deu muitas outras coisas, além de ter nos tirado de Porto Alegre. Queríamos trabalhar mais com o corpo, sem utilizar tanto texto, então, fizemos o espetáculo em italiano, mas qualquer iniciado em teatro compreendia porque tudo o que queríamos passar estava na ação. Era um espetáculo vivaz que rodou o Brasil e teve críticas muito boas no centro do país, principalmente da Bárbara Heliodora (todos muito impressionados porque ela tinha falado bem do espetáculo), virou cult e todo mundo queria ver. Depois desse espetáculo, mudou tudo, começamos a pensar diferente, ser mais ousados. E, por ser um espetáculo popular, o público e os entendidos de arte começaram a dizer que trabalhávamos com commedia dell'arte, mas não era isso. Mas já que eles afirmavam, começamos a trabalhar com a commedia. Contratamos o Joca Andrezza, que era um ator do Fora de Sério (grupo que tinha se dedicado à commedia dell'arte durante um período), ele nos deu aulas durante o período em que estávamos em temporada em São Paulo, depois resolvemos ir pra Itália e nos apaixonamos pelas máscaras. O Palese começou a fazer confecção de máscaras, depois do curso com o Donato Sartori em Pádua. Então, depois de Decameron, que é de 1993 a 1995, veio o terceiro momento de muitos espetáculos com máscaras, a commedia dell'arte marcou profundamente a nossa forma de fazer teatro. Trouxemos o Gaulier pra Porto Alegre para dar cursos de clown e bufão, e a classe artística porto-alegrense e brasileira (artistas de outros estados também vieram) teve acesso aos cursos deste grande mestre. E, disso, vieram os outros espetáculos: o Bebê Bum, espetáculos de clown, de bufão, enfim. Esse jogo da commedia dell'arte, embora hoje não façamos necessariamente só comédia, ele influenciou tudo o que viria a seguir. Enfim, até esse momento, acho que só o Palese dirigia, depois, teve um momento em que eu queria também dirigir, então nos voltamos pra dramaturgia já existente, montamos Sacra Folia, que não deixa de ser commedia dell'arte, que é uma comédia popular brasileira mas que está nesse universo. E, logo depois, no quarto momento, chegamos a um teatro com temática e linguagem contemporânea, vieram espetáculos como Como Vivem os Mortos? (2001), o Encontros Depois da Chuva (2001), Teus Desejos em Fragmentos (2006), Estremeço (2012) e Pequenas Violências (2013).
Espetáculo Decameron projetou a companhia para fora de Porto Alegre Foto: Cia Stravaganza divulgação
Cênicas: Como é que foi com o falecimento do Palese? Houve um rompimento de linguagem e de característica? Tem algo que você identifica que era uma característica dele e que depois se modificou no grupo?
Adriane: Será? Não sei te responder. Mudou no sentido de grupo porque eu acho que a mulher trabalha com uma coisa maternal que o homem não tem. O Palese era o líder, embora trabalhássemos juntos, tinha um direcionamento masculino. Eu sou mais maternal, sempre fui de engajar as pessoas. Eu acho que o grupo se modifica um pouco porque as ideias, talvez, começaram a surgir de todos os lados e não só de um núcleo. O Palese era muito rápido, já queria desenvolver e já começava. Ele até brincava com isso, dizia: “O que eu penso, logo existe”. Eu sou muito mais lenta, levo anos pra elaborar algum projeto e o meu desejo é sempre ter um monte de pessoas ao redor conversando, falando, pensando, em ação. Antes as coisas nasciam muito de mim e do Palese. Agora, somos muitos, somos mais. Com a morte dele, veio o espetáculo Teus Desejos em Fragmentos, que falava sobre as muitas mortes da nossa época.
Cênicas: Como vocês se vem em relação à cena teatral da cidade? Tem algum grupo que vocês se identificam em termos de linguagem, estética e até politicamente? Como se vem dentro do cenário teatral gaúcho?
Adriane: Eu me interesso muito por alguns grupos. Tem o Ói Nóis, o Sarcáustico, o UTA, o Depósito de Teatro, a Cia Rústica, a Santa Estação e vários outros. Tem o Circo Girassol, tem a Caixa do Elefante, o Anima Sonho, o Gente Falante. Na dança tem o Terpsi, a Muovere, o Meme, o pessoal da casa Tony Petzhold. Estamos todos trabalhando pelas artes cênicas de Porto Alegre, resistindo e combatendo, cada grupo com suas armas, sua história, suas possibilidades. E nesse caos que estamos vivendo, temos que nos apoiar, então não gosto de selecionar, esquecer. Gosto do teatro que se faz em Porto Alegre.
Cênicas:: Mas você vê semelhanças do trabalho de vocês com o deles?
Adriane: Sim. Por exemplo, eu não gosto muito de falar sobre o trabalho dos outros, mas o Sarcáustico segue um caminho parecido, também procuram trabalhar com teatro infantil, com uma literatura com temática contemporânea, eu gosto muito daquele espetáculo que fizeram no Arena (o Breves entrevistas com homens hediondos), eu acho muito interessante, adoro assistir a um espetáculo e pensar que gostaria de tê-lo dirigido. Eu acho que é completamente diferente do nosso trabalho, até porque eles são muito mais jovens. Mas eu vejo uma procura semelhante, trabalhar numa linguagem contemporânea, trabalhar temas atuais, procurar uma nova estética, tem a ver. É óbvio que todos nós temos a influência da Terreira, porque crescemos vendo eles e, inclusive, duas pessoas importantes na trajetória do Stravaganza foram do Oi Nóis, que é o Fernando Kike Barbosa e o Serginho Etchichury.
Cênicas: E fora desse círculo, vocês se relacionam com grupos de fora do estado? Fazendo trocas, intercâmbios, etc?
Adriane: Tem uma pessoa que eu gostaria muito de trabalhar, que é o Aderbal Freire Filho - que, pra mim, é o grande diretor desse país. O que eu assisto dele sempre é deslumbrante, criativo, em 2006 nós trouxemos ele pra dar uma oficina no Estúdio Stravaganza. O que acontece em Porto Alegre na parte da produção? Tu ganhas um projeto, aí tu vais passar quatro anos sem ganhar mais nada. Tivemos a sorte de fazer o projeto do Estremeço, com ele, ganhamos dois editais o Myriam Muniz e o fomento da Prefeitura. Desde aquela época não conseguimos ganhar outro edital. E, claro, hoje tem uma concorrência muito maior. Ganhamos o primeiro Petrobras, mas era de circulação, Diálogos de Norte a Sul, foi uma loucura viajamos durante um mês. Hoje eu nem me inscrevo no Petrobras. E, sinceramente, cada vez que eu me sento para fazer um projeto pra Petrobras, eu penso que não dá pra fazer o que eles pedem com o que eles dão, porque tu tens que fazer repertório e depois tu tens que criar um espetáculo, não dá. Os nossos espetáculos, como A Comédia dos Erros tem 9 atores mais os técnicos, o Estremeço também tem 11 pessoas. Então, para nós fazermos uma mostra de repertório é mais caro do que se um grupo menor for fazer, pra viajar também. Cada vez que eu faço um projeto, só ao estimar gastos de hotel, eu já tenho vontade de desistir, é impossível. Eu não consigo viajar tanto com A Comédia dos Erros, mesmo sendo uma peça de repercussão. Precisamos de uns R$ 300 mil para fazer, não cabe no Myriam Muniz do jeito que eu penso que deve ser feito. Não é mais aquela coisa de comer pastel, não dá, já passamos dessa fase. Então, se formos circular, tem que ficar em um lugar bacana, as pessoas têm que ganhar bem, tem que ser profi, caso contrário não vale a pena. Então, resumindo, fazemos intercâmbio com outros grupos quando alguns projetos nos proporcionam isso. Agora com o Pequenas Violências, circulamos pelo Palco Giratório Nacional do SESC, fizemos intercâmbios com grupos de Vitória, Itajaí e outras cidades. Ano retrasado fizemos com o Luna Lunera, também através do Sesc. Eu fiquei vários dias acompanhando o Teatro do Concreto, de Brasilia, aproveitando uma das viagens que fiz pela Redemoinho – Movimento de Teatro de Grupo. Enfim, a gente vai trocando na medida em que tem acesso.
Cênicas:: Como tu avalias, de uma forma geral, a cena gaúcha? Em relação também à produção dramatúrgica, se tu enxergas um traço comum na cena.
Adriane: Temos muitos Brasis, o teatro do Norte e Nordeste é completamente diferente do que se faz aqui no Sul, ou pelo menos grande parte dele. Lá as raízes brasileiras estão mais presentes, acho que os gaúchos têm uma coisa meio multicultural. Eu comecei a me dar conta que o que fazemos é um pouco europeu, afinal somos colonizados por italianos, alemães, a maior parte dos nossos professores estudou em Paris. Quando fazemos mestrado, lemos mais material em francês do que em inglês. Muitos de nós estudaram na Europa. E é claro que isso aparece na cena gaúcha. Até na nomenclatura, aqui só se fala no clown, lá pra cima é palhaço. Quanto à produção dramatúrgica, há traço comum entre Julio Conte, Ivo Bender, Diones Camargo, Ismael Caneppele, Vera Karam, Julio Zanotta e tantos outros? Acredito que não, precisaríamos encenar mais os nossos dramaturgos, que publicá-los mais pra ter uma visão profunda da dramaturgia do Rio Grande do Sul.
Cênicas: A Cia Stravaganza não trabalha tanto com dramaturgia própria, certo?
Adriane: Agora não. E é bem uma escolha, com a exceção do Pequenas Violências. Eu tenho me interessado muito por uma série de autores, gostaria de trabalhar com eles, adoro Nicky Silver e eu trouxe de Nova Iorque uns textos dele, que eu estou traduzindo, vamos ver. Eu acho que tem tanta dramaturgia sensível por aí, temos é que acessar, traduzir. A dramaturgia própria, pra mim, exige um longo tempo de trabalho, porque não é uma coisa de gabinete, é criada colaborativamente e aí é um ou dois anos. Para se trabalhar nesse tempo, precisa ter um patrocínio. Como é que tu vais hoje (hoje, porque antigamente se fazia, Decameron levou 2 anos em processo, e, mesmo assim, houve mudanças de elenco ao longo dos ensaios) entrar num processo de dois anos? Eles são difíceis e doloridos e as pessoas às vezes não aguentam, nem com apoio mensal. Um grupo como o nosso, precisa de certa estrutura pra fazer algumas coisas. Agora, grupos em que as pessoas estão começando, fazem qualquer coisa, vai na garra, na espontaneidade e na alegria. Já, num grupo em que todo mundo já tem seu lugar no mundo, é mais complicado. A nossa faixa de idade vai em média de 30 a um pouco mais de 60. Não quer dizer que vamos trabalhar só com patrocínio, mas para trabalhos longos é complicado. É um grupo que todos vivem de teatro, não são pessoas que moram com os pais e estão fazendo um curso.
Cênicas:: Como você vê as condições agora de produção em comparação como era no início da trajetória do grupo? Tem mais espaço? Os editais? As leis? O que mudou?
Adriane: Não há mais espaços, os editais ultimamente têm sido raros e contemplam a poucos, as leis não nos contemplam. No momento, eu não vejo para onde ir, como trabalhar. Nós temos muito mais grupos e o mesmo número de teatros. Hoje, se tu criares um espetáculo não significa que tu vais ter um lugar para apresentar, nem que tu vais poder fazer uma turnê. Antes, por exemplo, as cidades do interior compravam os espetáculos diretamente dos grupos, hoje praticamente não existe mais isso. Os grupos viajam ou pelo Sesc ou por projetos que eles fazem, oferecendo ingressos a preços populares, então, talvez nós mesmo tenhamos nos matado. Se tu não tens um projeto, tu não vais viajar. Ou seja, não viajar significa que tu crias um espetáculo e faz uma temporada de duas, no máximo quatro semanas, e, se tu não fizeres uma turnê do Sesc, tu estás morto. É isso que está acontecendo hoje aqui. Então, para essa estrutura, talvez não valha a pena produzir. Eu tenho pensado que talvez devêssemos fazer trabalhos mais fugazes, que tenham processos de criação fugazes, apresentações também, daí tu faz outro e faz outro. E não quer dizer que isso seja menos, é produto do seu tempo. Eu acho que talvez isso seja um caminho pra não pararmos de falar, de fazer. Eu não sei se eu me interesso em criar um espetáculo para apresentar uma temporada e depois fazer uma viagem. Hoje em dia está tudo vendido, tu não vais mais pros festivais, os curadores se reúnem e definem quais são os grupos que vão viajar, tu não tens mais entrada solitária em um lugar, só se der muita sorte. O cara ganha o Myriam Muniz de circulação e aí liga para um festival, diz que já tem passagem, alimentação e estadia, só me paga um cachê que eu vou, daí os festivais aceitam. Ou seja, tu tens uma coisa, daí ganhas outra. Antes tu mandavas o teu material, os curadores assistiam e te chamavam, hoje complicou. Se os festivais não são independentes, se criam redes, são sempre os mesmos grupos e espetáculos que circulam, entende? Indicados pelas mesmas pessoas em todos os lugares. Os mesmos cinco espetáculos vão para todos os festivais, eles são os escolhidos do ano. Raramente há surpresas.
Cênicas:: Mas você acha que deveria ser como?
Adriane: Penso que o Porto Alegre em Cena deveria ser o espaço de divulgação do teatro gaúcho. Eu costumo ir a festivais internacionais na Colômbia, Chile e Argentina, e todos esses festivais têm uma grande mostra do teatro local. Há uma semana de programadores de outros festivais, que ficam lá uma semana assistindo aos espetáculos locais, têm essa obrigação. Além disso há co-produçòes, Chile-França, Colombia-Inglaterra, Argentina-Canadá. Porque os festivais internacionais têm que ser uma via de duas mãos. Trazer o que é de fora e mostrar o que é daqui.
Espaços de mostra e espaços físicos são problemas recorrentes. Eu não sei como continuar fazendo um teatro maduro sem um espaço físico. Eu acredito que a única possibilidade de ter um público é ter um espaço, porque daí tu não ficas zanzando de um teatro para outro, tu faz um teatro que tem a tua cara, mesmo que seja numa salinha de 3x4. Eu acho que sem espaço não tem grupo. Eu não sei como um grupo sem espaço sobrevive. Onde são os encontros? Na casa de alguém? É inviável tu não teres o teu material contigo no ensaio, é inviável tu ensaiares um dia na Casa de Cultura, um dia em outro lugar. O espaço é o principal para um grupo existir. Sem espaço como as pessoas se encontram? Qual é o espaço de jogo? Como tu vais transitar de um lado para o outro?
Cênicas: Atualmente vocês ampliaram um espaço que já havia, mas que não podia receber público por conta do PPCI. Como está isso? E o novo espaço como vai funcionar?
Adriane: Quanto ao grande estúdio (o estúdio 1), foi comprado por mim e pelo Palese em 1998 e está cada vez mais lindo e acolhedor. Fizemos algumas reformas. O problema não é bem o PPCI, é anterior. Temos que fazer uma reciclagem de uso, ou seja, transformá-lo de garagens em espaço teatral alternativo, e tais trâmites não são fáceis, exigem recursos financeiros nossos e vontade política dos nossos governantes. Nada está resolvido, mas tudo encaminhado. É o que posso te dizer hoje. Já a nova sala (estúdio 2) está aberta ao público, inicialmente com os nossos laboratórios de criação, mas já estamos criando um projeto que se chama Quartas Stravagantes que vai ter cabarés, leituras encenadas, etc. Estamos ainda alimentando o projeto de ideias, fechando as primeiras atrações. A ideia é que seja um local de encontro da classe artística e também dos nossos espectadores. O formato está ainda em criação.
Cênicas: E a questão da premiação, como tu vê aqui no estado? O prêmio abre alguma porta? O valor ajuda?
Adriane: Prêmio em dinheiro é bem bom, dá credibilidade e realmente premia. É claro que é bom ganhar um prêmio, mas não interfere em nada. Acho que ninguém acredita em mais nada, não sou contra, acho bom, participo, faço, mas se tu ganhas uma coisa hoje, amanhã nem tu lembras. Então, na verdade, quem se mantém, se mantém pela obsessão em se manter. O que acontece? Tu põe A Comédia dos Erros todo ano em cartaz e sempre tem público. Por quê? Porque apresentamos todo ano, isso te faz ser lembrado, é uma estratégia que temos com as peças em repertório. Para mantê-las vivas, temos que produzir apresentações durante o ano.
Cênicas: Tinha mais público? Como é agora? Vocês também não trabalham mais tanto com teatro infantil?
Adriane: Da mesma forma que temos que estar sempre apresentando pro espetáculo estar vivo, os teatros tem que estar sempre apresentando teatro infantil pra sabermos que ele existe. Por exemplo, se a Álvaro Moreyra passar três meses sem peça infantil, quando entrar um espetáculo infantil, o público não vai mais. Tu não podes matar o teu espaço três meses, porque depois ele não volta. Acho que o teatro infantil é relegado. Não sabemos quando tem e quando não tem. Antes, os pais sabiam que todo sábado e domingo tinha no Teatro Renascença. E sempre tinha público. Agora tu sabes que no Teatro Novo sempre tem teatro infantil, por exemplo. Porque é um teatro que mantêm uma programação constante, que informa as pessoas o que está passando. É importante fidelizar o público, mas temo que só possamos fazer isso com uma sede. Na época da Comédia dos Erros no estúdio, tínhamos público fiel. Começou antes, com o Teus Desejos, mas a Comédia é um espetáculo pra mais pessoas. Tínhamos um livro onde as pessoas assinavam, deixavam um e-mail e eram avisadas de quando iria ter nova temporada. Como a experiência era diferente daquela de um teatro convencional, as pessoas estavam conosco, voltavam, assistiam diversas vezes. Na cumplicidade Shakespeare/Stravaganza deu-se um verdadeiro encontro, o espectador sente isso e se integra ao espetáculo. O Zé Celso faz isso a cada apresentação. No início do espetáculo, ele sempre trabalha o espectador. E o espetáculo só começa quando ele percebe que atores e espectadores estão juntos. Para o espetáculo começar, o espectador tem que estar contigo.
Cênicas: Mas esses outros espetáculos, como o Estremeço, tiveram público?
Adriane: Não. Tiveram público básico, num dia de sucesso, 80. Esses espetáculos não tem público massivo, não vão ter, porque o espectador parece querer ver sempre a mesma coisa, algo que lhe dê segurança e que não o inquiete. Mas têm que ser feitos, se nos movem. Porque se são verdadeiros em nós, vão encontrar em quem ressoar. É isso que importa. A potência de um espetáculo não está ligada à quantidade de público que atinge e nem ao “gostei” e “não gostei”. Um espetáculo que a gente “gosta” pode ser esquecido em minutos e aquele do qual “não se gosta” te marcar por décadas.
Cassiano Ranzolin e Adriane Mottola na peça Estremeço com texto de Pommerat Foto: Adri Marchiori